Neurologista CRM 770

Um Passeio pela América

Em início de setembro de 1979 chegamos a Boston. Eu estava realizando um sonho acalentado desde os meus primórdios  em Neurologia no Hospital do Servidor Público de São Paulo. A figura do Prof Raymond Adams inspirava qualquer neurologista devido a seus trabalhos e seu livro de Neurologia era uma referência mundial. No Institute of Neurology de Londres pude perceber o respeito que o Prof. Adams usufruía dentro da Neurologia europeia.

Assim que nos instalamos num hotel da própria comunidade universitária fui me apresentar ao Prof. Adams. Arrepiei-me emocionado ao chegar às portas e entrar no Massachusetts General Hospital (MGH) da Harvard University.  Muito bem recebido, logo quis destacar alguém do staff para que eu acompanhasse, que foi o Allan Ropper, jovem e brilhante neurologista.

Estruturou comigo a programação do meu estágio. Todos os dias na parte da manhã, visita aos leitos com um membro da equipe. A tarde, rodízio na patologia, radiologia e ultrassom. Também assistir ao Ground Round, uma sessão de discussão clínica com apresentação de casos clínicos. Havia também uma reunião semanal exclusiva para os médicos da equipe.

O Prof. Adams acabara de se aposentar mas continuava muito ativo e com grande vigor. Eu precisava quase correr para acompanhá-lo. Ele não utilizava o elevador para poucos andares.

Uma vez por semana, reunião na Patologia com Prof. Richardson que apresentava casos de autópsia com cortes de peças anatômicas durante a reunião e revelação dos aspectos patológicos macroscópicos. Isso era uma tradição local iniciada pelo Prof. Adams anos antes e não vi nada semelhante em Londres. Era, por assim dizer, o máximo em matéria de ensino que havia na época.

As visitas diárias aos leitos iniciavam rigorosamente as 7 horas e eu cheguei atrasado muitas vezes, porque não era fácil dirigir até o MGH e procurar estacionamento enfrentando a neve. Porque estava nevando em Boston, um tanto antes da estação de inverno.  Foi para mim a primeira vez porque em Londres não nevou no tempo que estive lá.

Assisti umas sessões de exame vascular por ultrassom de artérias cervicais e cranianas inclusive pletismografia ocular. Isto era a grande novidade da época como meio de avaliar o estado da circulação cerebral.  A sala era pequena com alguns aparelhos, cabendo uma maca com o paciente e sobrando um pequeno espaço para a técnica circular. Havia uma lixeira grande em que ela jogava as gazes sem mesmo olhar na direção. Fazia tudo com exímia e rapidez gastando no máximo 20 minutos por paciente.

Foi uma experiência fantástica, um aprendizado incomparável. O americano tinha uma rotina pesada de trabalho, das 7 da manhã às 7 da noite, com intervalo curto de almoço. Diferente de Londres, onde eu iniciava as 9 e terminava as 17 horas, com interrupções para chá/café, além do almoço.

Eu levei material clínico e patológico de neurocisticercose (“ovos de solitária no cérebro”) e de acidente vascular cerebral (“derrame “) provocado por doença de Chagas do coração. O material patológico foi-me cedido pelo Dr. Maurício Sérgio Brasil Leite que era assistente do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da UFG. Como naquela época ainda não havia tomografia computadorizada e muito menos ressonância magnética, as provas diagnósticas definitivas em Neurologia, eram os estudos patológicos.

Mostrei isto para o Prof. Adams. Ele ficou muito impressionado porque estas doenças praticamente inexistiam nos Estados Unidos. Organizou para que eu mostrasse isto na reunião de seu staff. Foi outra emoção, eu lá no meio daquele pessoal, apresentando o material com slides que tenho guardados até hoje. E para aumentar mais meu orgulho naquele momento, o Prof. Adams apresentou-me como professor de uma das maiores universidades do Brasil.

No dia seguinte o Prof. Adams levou-me até o gabinete do Prof. Miller Fischer, outro expoente da Neurologia, para que eu mostrasse o material sobre doença de Chagas. Prof. Miller Fischer mostrou muito interesse pelas figuras de coração chagásico e disse-me que nós tínhamos um modelo vivo de ventrículo cardíaco emboligênico que não existia em outras doenças, porque o exemplo que se conhecia era da fibrilação atrial. Recomendou que os pacientes com cardiopatia chagásica deveriam tomar anticoagulantes para evitar os derrames (o que não se fazia na época). E que se dispunha a me ajudar a publicar aquele material para divulgar o assunto de maneira ampla.

Não bastasse tantas emoções, veio então a mais feliz: o Prof. Adams convidou-nos, Ilneyda e eu, para um jantar em sua casa. Foi um acontecimento que eu nunca imaginara: estar lá com ele e sua esposa Dra. Maria desfrutando de um momento mágico. Inesquecível.

Mas Boston também nos alegrou em outros sentidos. Encontramos os goianos João Elisiário de Araújo e o casal Eliana Frota e Nelson Gillet. O João trabalhava comigo no Instituto de Neurologia de Goiânia e estagiava no Departamento de Radiologia do MGH. A Eliana Frota trabalhava no Departamento de Cirurgia do Children´s Hospital e o Gillet como anestesista. O casal já estava lá há algum tempo e nos recepcionou excelentemente. A Eliana e Ilneyda se deram muito bem e bateram pernas pela grande Boston.

Fizemos 2 passeios no Dodge que aluguei e que seria o meu primeiro carro automático, apanhei bastante para dirigi-lo. Num primeiro momento fomos a Cape Cod onde almoçamos e passamos o dia. No restaurante a gente escolhia uma lagosta viva num tanque na entrada. Colocava um babador para não sujar a roupa porque a lagosta vinha inteira e a gente tinha que quebra-la. Neste passeio estava conosco o Jaderson Costa da Costa, neurologista de Porto Alegre que fazia treinamento em neurofisiologia no Children´s Hospital. Ficamos amigos e até hoje mantemos vínculos profissional e de amizade.

O segundo passeio, mais distante, foi uma ida a New Hampshire para visitar o Jose Ochoa, chileno, que conheci em Londres e havia se transferido para trabalhar na Dartmouth University. Chegamos lá de surpresa e o Ochoa estava organizando um meeting internacional sobre neuropatias periféricas, sua área de atuação. Como não teve tempo de nos acompanhar, convidou-nos para o jantar do evento. Lá encontrei o Prof. PK Thomas de Londres e que havia se instalado no novo Royal Free Hospital, perto de onde eu morei em Hampstead. Não acreditei quando o Thomas se lembrou de mim por causa de um caso clinico que ele apresentou no Institute of Neurology e que acertei o diagnóstico de síndrome de Shy-Drager.

Num destes passeios, conhecemos a ponte de Concord (Concord´s North Bridge), local histórico, onde os patriotas locais impediram avanço de tropas inglesas, dentro da luta pela independência dos Estados Unidos.

Num dos Ground Rounds do MGH, que se realizava num anfiteatro circular com assentos em fileiras dispostas em degraus, eu fiquei observando os presentes, tentando adivinhar as nacionalidades. Fixei-me em um jovem próximo de mim e pensei “ este é sueco”. Saindo dali, encontrei o João que estava conversando com o “sueco”. Apresentou-me o carioca Erik Sweet, neurologista, que fazia estágio em distúrbios de linguagem. Mas o Erik me disse que era nascido e morava no Rio de Janeiro, mas filho de pai americano e mãe sueca. Agora, sim. Ficamos bons amigos. O Erik fez um churrasco para nós e mantemos contato até hoje.

Após alguns dias em Boston mudamos para um flat em Brookline, parte da grande Boston, numa rua paralela à importante avenida do mesmo nome. Conhecemos ali um casal aposentado, ele um ginecologista. Gostava de construir casas já que naquela época era comum as pessoas fazerem isso por si só, sem orientação de construtores, aplicando os pré-moldados.

Logo nos primeiros dias assisti pela TV um jogo de basquete do Boston Celtics. Apesar de não muito entendido no assunto fiquei boquiaberto pela técnica e performance dos atletas muito, mas muito superior, ao que eu vira aqui no Brasil. Passei a assistir quase todos os dias.

Não podia deixar de ir conhecer o campus da Harvard University situado em Cambridge, também parte da grande Boston. Vi o monumento de John Harvard, fundador da Universidade. Fiz algumas aquisições na Harvard Coop para guardar como lembranças.

Eu tinha duas incumbências para realizar em Boston. Trocar uma pipeta que chegou estragada para o José Salum no Departamento de Bioquímica da UFG. Só que eu não sabia que a indústria ficava distante. Convidei o Joao Elisiário. Tivemos que pegar um trem e depois ônibus para chegar ao local. Mas foi só explicar e mostrar a pipeta que foi imediatamente trocada.

A segunda era comprar um molinete de pesca para o compadre Tácio Vaz, da marca Daiwa. Procurei em algumas lojas sem sucesso. Até que um vendedor me esclareceu que era marca japonesa e só encontraria em lojas importadoras.  Mas que ele tinha produtos americanos de qualidade excelente.  Adquiri uma destas, não sei se Garcia ou Mitchell, que satisfez plenamente o meu compadre.

Não podia deixar de provar a famosa e muito boa cerveja de Boston, a Samuel Adams. Aliás o mestre cervejeiro que a produziu, Samuel Adams, foi pai do governador de Massachusetts, de mesmo nome e importante figura na luta da independência americana.

A saudade de nossos filhos estava cada vez mais apertada. Correspondência na época só por correios.  Mas após Boston, tinhamos mais uma etapa a ser realizada.

Ilneyda e eu degustando lagosta com o Jaderson em Cape Cod.
Almoçando com Nelson Gillet e João Elisiário.
Eliana Frota e Ilneyda no monumento aos navegantes em Cape Cod.

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